[Originalmente publicado no FinalBoss]
“Excentricidade” é uma palavra que poderia ser encaixada sob o verbete “Grasshopper Manufacture” no grande dicionário das produtoras de videogame. Desde o princípio, o estúdio chefiado por Goichi Suda (ou Suda 51, caso prefira usar seu pseudônimo) optou por criar jogos de tramas e situações inusitadas, com temas que vão de dias cíclicos em um hotel fantasma, operador de câmera em uma cidade com monstros e um grupo de assassinos profissionais que são fruto da mente de um só. O mesmo se aplica à jogabilidade de seus títulos: em se tratando de franquias originais da GHM, elementos de jogo incomuns são inseridos. A recepção crítica de Killer 7, seu mais recente game de franquia original para consoles, teve recepção de público e imprensa bastante misturada, com gente aplaudindo seu estilo audiovisual, trama elaborada e o fato deles jogarem o manual de jogabilidade padrão pela janela… e outros não curtindo pelos mesmos motivos. De qualquer forma, o trabalho deles em K7 atraiu a atenção de várias publishers, incluindo a Namco e a Marvelous. E foi em parceria com esta última que foi produzido No More Heroes, um game de ação exclusivo para o Wii que fugia de franquias estabelecidas, direcionadas à família e partidas em grupo, ou compilações equivocadas de minigames: o jogo era sangrento, ridiculamente violento, parecendo uma sátira / respostinha à visão americana da cultura japonês. Aproveitando este ensejo dos poucos jogos com a classificação Mature para o sistema – os primeiros a virem à mente são The Godfather e Manhunt 2 – a Ubisoft decidiu trazê-lo aos EUA em sua glória sangrenta.
Confiram nossa análise e descubram como se saiu a primeira investida da gangue de Suda no console da Nintendo…
A trama de No More Heroes é, no mínimo, insólita. Travis Touchdown, um jovem fã de videogame, anime e luta livre, consegue arrematar uma katana laser em um leilão online e se mete a virar um matador profissional. Parte desta brilhante decisão se dá por um encontro que ele tem com uma bela mulher chamada Sylvia Christel em um bar, onde ela o incita a acabar com a raça de um sujeito com seu brinquedinho recém-adquirido… o problema é que este pobre diabo que morre nas mãos de Travis é considerado o décimo-primeiro melhor assassino profissional da região de acordo com a organização UAA. Entrando no espírito da coisa, Travis decide eliminar aqueles que estão acima dele no ranking, assim ganhando fama, fortuna e talvez uma chancezinha com senhorita Christel. Para isto, o jogador deverá explorar a fictícia cidade de Santa Destroy (inspirada na Costa Oeste americana) e aprender as habilidades da profissão e criar uma reputação.
O que Killer 7 tinha de linear e hermético (seja a jogabilidade em trilhos ou a trama, que dava margem a uma infinidade de interpretações e discussões entre pessoas que o zeraram), No More Heroes tem de direto, na cara. Metáforas e alegorias políticas, paranormais, e sociais do game lançado para GC e PS2 deram lugar a toda sorte de referência à cultura pop e gamer. Em poucas horas de jogo, o jogador já consegue reconhecer no mesmo balaio Star Wars, Radiohead, jogos 8-bit, Sex Pistols, Dragon Ball Z, Selvagens da Noite… e estas são apenas algumas das muitas tiradas de chapéu bacanas, que captadas ou não pelo jogador parecem mais amistosas. Os jogadores da velha guarda vão se emocionar com as referências a jogos e gêneros de outrora, como o menu de passagem de nível da UAA que mais parece um fliperama dos anos 80. O jogo esbanja estilo, como parece ser uma constante nos títulos da Grasshopper.
A jogabilidade de No More Heroes combina o mais tradicional dos beat-em-ups de outrora com elementos de jogos de sucesso mais recentes – mundo aberto, evolução e customização visual de seu personagem dentre outros — e aspectos que o Wii proporcionou muito bem devido ao esquema de controle Remote + Nunchuk. No entanto, ao invés de fazer do game um festival do balanço de Remote (o que poderia ser esperado de um game com um sabre laser, já que a LucasArts anda demorando a oferecer isto no console com a franquia Star Wars), a Grasshopper se manteve conservadora: os ataques de espada são desferidos com o botão A, chutes com o B, Z trava em um inimigo, o direcional digital rola para o lado desejado, e a posição do Remote define uma das duas guardas da espada – alta ou baixa, assim atacando o inimigo na parte correta, ou aparando golpes desta direção.
Mas os sensores de movimento não se resumem a isso… ao conseguir emendar um grande combo de golpes, uma seta aparece na tela para que o jogador faça tal movimento com o Remote para desferir um golpe final matador; e como dito antes, Travis é fã inveterado da lucha libre mexicana, e ao deixar os inimigos atordoados com chutes ele pode dar agarrões e aplicar golpes de seus heróis mascarados do ringue. É só mover o Remote e o Nunchuk nas posições indicadas na tela e bingo: seu inimigo vai beijar o asfalto. Não se deixe enganar: se você acha que vai conseguir vencer No More Heroes só no esquema button-mashing, é melhor nem começar. Outro ponto a se levar em consideração é que sua espada tem uma bateria com vida útil, e quando esta acaba o jogador precisa se virar para achar uma pilha extra… e se não tiver, achar um canto para recarregá-la… é só pressionar o botão 1 e balançar o controle, e Travis fará o mesmo com sua katana na tela (com uma movimentação incrivelmente suspeita, diga-se de passagem).
Ao eliminar grupos de inimigos, há um caça-níqueis no rodapé da tela: se este é preenchido com três símbolos iguais, Travis passará ataques especiais chamados Dark Side. Existem alguns diferentes: um o deixa super-acelerado, outro faz com que o game dispare bolas de eletricidade da espada e mate inimigos automaticamente, um mata inimigos automaticamente com QTE (quick time events, aperte o botão certo na hora em que for apresentado). Todos estes ataques têm efeitos visuais na tela bastante psicodélicos, e quando ativados são normalmente acompanhados de algum grito de guerra surreal por Travis (“strawberry on the shortcake!!”, algo como “morango no bolinho!!”, um favorito da casa).
Enquanto os soldadinhos rasos do game normalmente são mais fáceis de derrotar, algumas versões destes vêm com armas diferentes – katanas laser, armas de fogo, tochas – e aí deve se levar em conta o esquema de guarda, esquiva e recarga… senão é morte certa. Se os peixes pequenos não te ensinarem isto, os chefões de fase certamente o farão. E é nos duelos contra os 10 melhores assassinos de Santa Destroy que No More Heroes realmente brilha: as lutas de boss são simplesmente insanas, intensas e às vezes até mesmo engraçadas. Os personagens são tão inusitados e insólitos – indo de um detetive corrupto fã de karaokê a um carteiro com ilusões de grandeza e acha que é um herói estilo Power Rangers – que todo encontro com eles é um evento, e as lutas colocam progressivamente todo o conhecimento das técnicas de combate do jogo à prova.
Para participar dos duelos contra os assassinos do ranking, Travis precisa pagar uma taxa de entrada. Como nosso herói não é feito de dinheiro, ele deve realizar uma série de “bicos” oferecido na agência de empregos da cidade – recolher lixo, cortar grama, catar coco verde, procurar gatinhos perdidos… e eventualmente eliminar algumas figuras não queridas na cidade, como os donos da rede Pizza Butt. Com a grana obtida nestes minigames – exceto os de matança, que são versões dos combates contra hordas de inimigos, mas com limites de tempo e outros desafios – o jogador também pode comprar novas roupas para Travis, vídeos com exibições clássicas de luta-livre (assim aprendendo alguns novos golpes!), videoclipes, novas katanas laser e melhorias – a ótima doutora Naomi saca tudo disso, incluindo maneiras de reduzir o consumo da espada, identificar itens escondidos no cenário, e por aí vai –, ir à academia do mestre Thunder Ryu para malhar um bocado, ou caçar as Lovikov Balls escondidas pela cidade para aprender técnicas do velho russo e bebum que dá nome a estas. Sem contar a moradia de Travis, um motel onde ele tem sua vasta coleção de bonequinhos, roupas, mapa da cidade, cards colecionáveis, videogames e sua gatinha Jeane – aquela que fez o jogo atrasar três meses, e que tem um minigame incrivelmente sem propósito e engraçado… quem esperava que um matador profissional deitasse pra fazer carinho na gata em sua barriga, ou brincar com ela?
O mundo aberto de No More Heroes nada mais é do que um núcleo principal para as atividades do game, e aqueles que jogarem esperando que este seja algo tão abrangente e cheio de possibilidades quanto San Andreas ou Lost Heaven se decepcionarão… não se deixem enganar: o tamanho da cidade é bem modesto, principalmente se comparado com o game mais recente da Rockstar. Fica bem claro de antemão que não se trata de criar algo tão ambicioso quanto um GTA da vida. Posto isto, a execução do sistema de exploração da cidade a bordo da potente moto Schpel Tiger é capenga que só: a colisão com os carros da cidade é esquisita, o draw distance é irregular e o carregamento de texturas é mais bizarro e inconstante ainda – sério, de tão meia-boca chega a parecer que é uma zoada intencional nos primeiros games do gênero mundo aberto – com texturas de prédios pipocando inteiras de uma vez. Os usuários mais perfeccionistas vão chiar, e com razão… pois se isto foi uma sátira aos jogos mais antigos, a Grasshopper falhou em deixar mais claro aos jogadores que se tratava uma brincadeira. E se não foi nesse intuito, pior ainda…
A longevidade de No More Heroes se garante na caça aos colecionáveis (são dezenas de camisetas e outros acessórios para Travis, alguns escondidos em latas de lixo da cidade), equipamentos extras, e um nível de dificuldade a mais para quem já zerou o game pelo menos uma vez – pelo menos os itens do save anterior são transferidos para este, o que deixa o desafio um pouquinho mais justo para os games mais fracos de coração. Além disto, há um minigame destrancável e um final “verdadeiro” para os mais dedicados. Sem se dedicar demais à coleta de extras e afins, é possível zerar o jogo em cerca de 12 horas.
Poucos estilos visuais são tão característicos quanto os dos games da Grasshopper; a pergunta recorrente na redação era “esse é o jogo do pessoal do Killer 7?”. Assim como nos outros games da GHM, percebe-se que o negócio deles é o estilo visual e direção de arte em primeiro lugar, e o poderio tecnológico do console fica em segundo plano. Tecnicamente, o jogo faz o trabalho dele direito (suporte a 16:9 e progressive scan incluídos) e tem uma impressão melhor que a de Killer 7, mas certamente não é o jogo que mais se beneficia do processamento gráfico do Wii. Do outro lado da moeda, o design de personagens é bacana, principalmente no caso dos assassinos principais e de Silvia. Todos são estranhos e interessantes, o que soa como uma fórmula vitoriosa. Fora isto, a cidade e seus estabelecimentos são recheados de referências pop legais como uma fachada de loja parodiando a capa do disco Never Mind The Bollocks, Here’s the Sex Pistols, outra que remete à Happy Mask Shop de Ocarina of Time (mas como uma loja moderninha contemporânea). Outro aspecto digno de nota é a interface do game, que mata as saudades da era 8-bit e os arcades daquela época: grandes pixels (alguns refeitos como cubos em 3D, formando objetos quadradões), tabelas vetoriais, textos escritos em fontes quadadonas. O estilo é simplesmente fantástico. Enquanto isto, as fusões fusões entre cenas têm um clima de street art, com um efeito de grafitti fixando uma parte da cena atual em um fundo claro.
Quanto ao departamento sonoro do game, mais um trabalho bem realizado pela duplinha Takada & Fukuda. A trilha incidental é muito boa, com temas variados e animados – e desta vez temos uma melodia principal que se faz presente em várias músicas diferentes, com arranjos diferentes (incluindo uma hilária versão de guitarra estilo “Eye of the Tiger” para a academia). A dublagem dos personagens principais é bastante competente e bem dirigida, sem exageros indevidos… e felizmente, há uma forma de habilitar legendas desta vez, o que é bom em se tratando de um game com um grandes (e surreais) diálogos entre os assassinos. Os comentários dos capangas rasos são feitos de forma insólita… afinal de contas, como o cara pode gritar “ai, meu baço!!” se ele acabou de perder a cabeça, ou cortado pela metade na vertical? Mas tudo bem, isto é mais uma piadinha do que qualquer outra coisa. Alguns efeitos sonoros do game fazem jus ao estilo 8-bit arcade citado acima, como o barulho das moedas obtidas, a recarga da espada, o barulho do caça-níqueis dentre outros. A caixinha de som do Remote replica efeitos da recarga da espada, golpes mais críticos… e um dos usos mais divertidos do game é atender os telefonemas de Sylvia que rolam logo antes da luta contra os chefões. O jogador deve levantar o controle para ouvi-la falando direto no speaker, em um dos melhores usos da caixinha de som do controle até então… as frases são grandes e saem em uma qualidade bem acima do aceitável.
É inegável que No More Heroes tenha erros de execução bem aparentes, mesmo que estes sejam ofuscados pelos seus pontos positivos de modo geral. Ironicamente, o mais chamativo de todos é o seu mundo aberto: por mais que não seja o ponto mais importante do game – e sim a pancadaria e as lutas de boss – a realização safada vai provocar uma impressão bem negativa em alguns jogadores devido à taxa de quadros irregular e as maluquices de textura e draw distance. Em relação às seqüências de combate, os gráficos ora parecem serrilhados, ora mais suaves, rola uma inconstância variando por localidade e cena; ainda neste quesito, o frame rate na luta contra os soldados menores é inconstante… felizmente nada que prejudique a jogabilidade, mas aparente de qualquer forma. Fora isto, uma reclamação menor fica por conta de alguns samples de voz repetitivos dos soldadinhos quando morrem.
O estúdio Grasshopper Manufacture conseguiu lançar mais um game com potencial de sobra para dividir opiniões…. só que desta vez, a produção deles mira em público bem mais amplo. Na gíria do futebol, podemos dizer que No More Heroes joga para a torcida dos fãs de videogame: temos um protagonista tão maluco quanto fácil de se identificar com (vamos lá: Travis tem vários bonequinhos colecionáveis de videogame e anime, se vira para comprá-los e tenta seguir seu próprio estilo… poderia ser você), jogabilidade que mescla o clássico dos beat-em-ups clássicos com elementos de jogos mais recentes de sucesso e uso esperto do combo Remote + Nunchuk, uma avalanche de homenagens e referências pop e gamer muito bacanas e uma trama simplesmente insólita e envolvente. Ao mesmo tempo, o game está longe de ser perfeito em sua execução… há uma série de equívocos flagrantes de realização que podem causar uma impressão ruim: um mundo aberto bastante capenga (mesmo que o grosso do game realmente seja a pancadaria nos ambientes fechados), taxa de quadros por segundo irregular e outro um caso de “estilo artístico acima da execução técnica” nos gráficos. Mesmo assim, é difícil ignorar o apelo dos pontos positivos de No More Heroes quando você o joga, que no fim das contas é bem melhor que a soma de suas partes.