Portal: O Bolo é uma Mentira

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Portal (PC)

[Originalmente publicado no FinalBoss]

Em 1997, o estúdio 3D Realms fez a apresentação de um dos mais promissores elementos de Prey, seu então novo FPS para o PC: um sistema de portais que transportavam o jogador para outra localidade da fase, algo inédito na época. No entanto, este jogo demorou bastante para sair após uma série de mudanças na equipe de produção… Pulemos para 2005, quando um grupo de estudantes da Digipen – universidade norte-americana especializada no desenvolvimento de jogos para computador e videogame – chamado Nuclear Monkey Software lançou gratuitamente a demonstração jogável Narbacular Drop. A premissa do game era similar: guiar uma personagem através de um calabouço com um sistema de portais bastante curioso, sendo possível entrar por uma parede e cair do teto, cair no chão e sair da parede, e por aí vai. Eventualmente, estes estudantes foram contratados pela Valve Software e puderam criar uma nova demonstração de seu conceito: Portal.

“Apenas uma demonstração”? Não necessariamente: o que aparentava ser apenas uma série de exemplos do sistema de portais empregado nas fases a ser incluída no pacotão The Orange Box se tornou uma pequena aventura paralela… que é conectada, de alguma maneira, ao universo de Half-Life! O jogador controla Chell, uma mulher que age como piloto de testes (ou cobaia, como preferir) da Aperture Laboratories, empresa que está trabalhando em uma novíssima tecnologia de portais de teletransporte gerados pelo usuário de uma promissora arma. Ela acorda em uma cela de detenção e é guiada por uma voz feminina computadorizada (e não muito estável) que apresenta os 19 desafios a serem enfrentados com raciocínio, perícia e paciência. Afinal de contas, tudo o que você tem é a arma geradora de portais, e quando muito alguns caixotes.

Chell começa em uma pequena sala de detenção sem arma nenhuma, ficando à mercê das situações propostas pelo computador. Após um tempo, o jogador obtém a Portal Gun, e aí novas possibilidades se abrem. No começo, só é possível abrir um ponto no cenário; mais tarde, outra parte da arma habilita a função de criar os pontos de entrada e saída (nas cores azul e laranja). As leis da física – gravidade e inércia, principalmente – são respeitadas de forma que fazer um buraco azul na parede e o laranja no chão a metros de distância faça com que o jogador pule no abismo, atravesse o azul e seja arremessado na horizontal com a velocidade da queda a partir do laranja. Pode soar um pouco confuso, mas na prática a coisa se mostra bastante óbvia… o grande lance é imaginar como aplicar isto a cada situação do jogo, e essa lógica espacial é um pouco desorientadora às vezes, mas dificilmente assustadora.

À medida que o jogador avança, os quebra-cabeças vão ficando mais e mais complicados: superfícies onde os portais não se afixam, água tóxica, feixes e esferas de eletricidade cujo toque é morte instantânea… e quando você acha que as coisas não podem piorar, pequenas torres-robô com metralhadoras estão convenientemente localizados para acabar com a sua raça. Pois é, a situação não é exatamente a mais fácil do mundo, principalmente nas missões finais do jogo… uma delas em particular demanda que o jogador fique se prendendo em loops de gravidade, criando novos portais para escalar uma enorme sala vertical onde só as plataformas são capazes de fixar portais.

O game inteiro deve durar umas 2 ou 3 horas, sendo que as últimas fases em particular são as culpadas (no bom sentido!) desta extensão, dado seu grau de dificuldade elevado em comparação às anteriores. Além dos Achievements, ao zerar Portal são habilitados os mapas avançados (isto é, versões consideravelmente mais difíceis de alguns cenários do jogo) e novos desafios de tempo. Por fim, o game também oferece a importação de novos mapas, o que dá margem à própria Valve e aos modders em geral para criarem novas arenas para a galera exercitar os neurônios.

A jogabilidade é inovadora e muito bacana, mas igualmente digno de nota é o senso de humor de Portal. O jogo é engraçado e cruel ao mesmo tempo, já que o jogador é constantemente atormentado por seu guia e pelas circunstâncias de forma geral: falsas promessas de um bolo úmido, fofinho e delicioso caso desista de uma sala considerada “quebrada, portanto impossível” por seu guia; metralhadoras-robô que cantam com uma vozinha suave enquanto te matam; a pressão exagerada (porém feita de maneira supostamente sem exigências demais, o que é obviamente mentira)… é como se este guia fosse uma versão engraçadinha de HAL-9000, o computador louco de 2001: Uma Odisséia no Espaço, mas com a diferença que você não tem muita certeza se ela quer sua morte ou seu sucesso. Outro “personagem” do game, o Weighted Companion Cube – um “cubo companheiro”, um caixote com um coraçãozinho em cada face, e este deve ser carregado do início ao fim de certa fase – também é de rolar de rir, dado que seu guia reforça que se trata de um objeto, e não de um ser vivo… mas cai em contradições o tempo todo!

Naturalmente, o jogo utiliza o Source Engine, e este é usado para retratar os laboratórios brancos e assépticos da Aperture Laboratories, incluindo pictogramas que representam características, perigos e desafios de cada uma das dezenove áreas – vocês sabem, tipo os sinais de trânsito. No entanto, nem tudo são paredes clarinhas e clima limpo… Em algumas localidades convenientemente mal escondidas no jogo, vemos uma fábrica em péssimo estado de conservação, com pichações feitas por outras “cobaias” anteriores demonstrando que o tal computador não é tão gente boa assim: “o bolo é uma mentira”, “socorro”, mãos desenhadas na parede, declarações de amor ao Weighted Companion Cube (com direito a pôsteres a la revista para maiores), um nome e senha a ser utilizado no site do laboratório (sim, um igualmente surreal site de marketing viral do jogo), tudo adiciona ao clima hilariamente paranóico que o jogo traz.

A parte sonora também cai bem, principalmente pela dublagem do computador: a dubladora da voz computadorizada fez um excelente trabalho ao fazer um computador supostamente humanizado, com bastante ênfase no “supostamente”; outro elemento divertido é a voz das metralhadoras-robô cantoras (“você ainda está aí?”, “eu não te odeio”, “me ponha no chão”, “eu não a culpo”, etc…). Já a trilha sonora em si é minimalista, salvo um tema de suspense ou outro na hora certa… isto sem contar o absolutamente fantástico tema final de autoria de Jonathan Coulton, ex-programador e atual cantor folk rock de temas geeks que foi convocado pela Valve para criar uma música para o jogo (e de acordo com o site oficial de Coulton, a música deverá ser disponibilizada na versão de Coulton posteriormente no Steam, ou algo assim). É de ouvir uma vez e ficar com aquilo na cabeça.

O principal (e talvez único) problema de Portal é sua duração. Conforme dito antes, o jogador poderá vencer a aventura padrão em cerca de 3 horas… no caso do jogador não ser aquele mais fissurado em catar Achievements e time trials, ele poderá achar que o game é divertido mas não rende. O jeito é esperar que os mapas customizados (e quem sabe pela própria Valve, também) comecem a pipocar por aí, dado que neste aspecto o jogo tem potencial criativo pra caramba. Tirando isso, é capaz de um jogador ou outro mais propenso a vertigem e enjôo se sentir desorientado em algumas fases. Normal, acontece mesmo aos acostumados.

Trazendo uma experiência ao mesmo tempo opressora e muito engraçada, Portal zoa com o senso de direção dos jogadores ao desafiar propor desafios que levam em consideração espaço e física com seu sistema de entradas de teletransporte. Diferente de Half-Life e afins, o game está concentrado nos quebra-cabeças, e não no combate… mas isto não quer dizer que você não terá inimigos no decorrer desta aventura. De uma demonstração técnica a um game propriamente dito, o conceito do jogo sustenta lindamente e é uma das mais gratas surpresas de nossa memória recente. Como um jogo solo, talvez os US$ 20 sugeridos no serviço online soem como um valor salgado; não surpreendemtemente, o jogo foi incluído no pacotão The Orange Box, cujo valor agregado é uma ótima pedida e sai mais barato que suas partes em separado. Recomendado a todos, independente de gostarem de bolo ou não.