[Originalmente publicado no FinalBoss]
De uns tempos para cá, os videogames (em todos os meios – consoles, computadores, portáteis…) têm se proposto a colocar o jogador na pele do personagem, no meio da ação. Isto acontece de maneiras diferentes, seja com cutscenes (filmes contando o que está acontecendo, como em Metal Gear Solid ou Halo) ou integrando os elementos narrativos à experiência do jogo, como no primeiro Half-Life, que fez tal integração com maestria. Nada de textos, filminhos gerados previamente ou na hora; tudo era apresentado na própria engine do jogo, dando uma sensação de continuidade e interação com o personagem e o cenário. Aclamado em 1998 e impressionante até hoje, Half-Life proporciona uma grande experiência de jogo e um desenrolar de roteiro surpreendente… seis anos se passaram, e após tantos atrasos, furtos de código, imbróglios entre desenvolvedora e publisher, finalmente sai a esperadíssima sequência: Half-Life 2 te coloca na pele de Gordon Freeman, cientista e libertador da humanidade…
… mas será mesmo? Para tentar manter o elemento surpresa para quem ainda vai jogar, vou tentar passar o mais longe possível de potenciais spoilers… afinal de contas, não quero estragar a história do jogo pra vocês, certo? Enfim, continuemos… Muita coisa não ficou muito explicada no desfecho de HL1, desde o acidente intradimensional até a invasão alienígena; Half-Life 2 começa com você em um vagão de trem lembrando das palavras do misterioso G-Man, um representante do governo e seu contratante. Quem ele representa? Ele é da Terra e come torradas com requeijão como um humano padrão? Mmmm, torradas… o cheiro do pão e… cinzas… e ops, o trem chegou. Parada final: City 17, cidade para onde você e outros humanos foram relocados – aparentemente, na marra – e não só humanos, já que vortigaunts (se lembram daqueles alienígenas que tinham ataques elétricos no HL1?) também estão na mesma cidade, convivendo pacificamente com os humanos. Ao chegar lá, você e seus colegas de trem são recebidos com toda a cortesia que os guardas da cidade têm… isto é, nenhuma. Seus direitos civis acabaram quando você pisou na plataforma da estação. É pisar lá e dar de cara com robozinhos voadores fotografando os cidadãos onde quer que eles vão, caminhões blindados com armas montadas, aranhas mecânicas gigantes patrulhando a cidade… e pela cidade inteira, telões e telinhas mostrando uma figura mais velha (e que lhe parece bem familiar) estão espalhados por toda a cidade, proferindo discursos e palavras de ordem sobre como os humanos precisam evoluir e conter o instinto, que ele alega ser um grande mal da espécie. Um verdadeiro dono da verdade… Enfim, a cidade onde acontece 1984 (vocês sabem, o livro de George Orwell que trouxe o termo Grande Irmão – Big Brother – para todos os lares) deve ser bem próxima à City 17… aparentemente no Leste Europeu, City 17 pode ser resumida em poucas palavras: quase um campo de concentração, um terrível regime opressor liderado pelo doutor Breen (o homem do telão, ex-diretor do laboratório Black Mesa… onde Freeman trabalhava e o incidente de HL1 aconteceu) e o grupo conhecido como Combine (seriam alienígenas? humanos modificados? mas eles falam nosso idioma, eles são humanóides!)… e não, esta não é a única cidade deste tipo existente. A cada dez passos dados, você vê alguém levando uma dura da Proteção Civil (nome irônico, dado que tudo que eles fazem é descer a porrada nos moradores da cidade) e outros exemplos de desumanização.
Não surpreendentemente, alguns humanos estão fazendo de tudo para sair deste inferno na Terra e começam uma revolução, e é aí que Freeman chega para a felicidade deles… marcam presença alguns personagens das antigas (como o chefe de segurança Barney e um dos cientistas de Black Mesa, dr. Isaac Kleiner) se unem a novos (dr. Eli Vance — e sua filha Alyx, a morena que ainda vai dar o que falar – e a dra. Judith Mossman) para arrumar uma maneira de usar as máquinas de teletransporte que estavam sendo experimentadas para enviar os cidadãos para algum lugar seguro e, de preferência, bem longe dos Combine e do doutor Breen. O mais curioso é que os feitos de Freeman em Black Mesa são conhecidos por praticamente todo mundo na cidade; a reverência dos membros da resistência a Freeman é grande, e a presença dele parece trazer mais confiança e botar mais fogo na lenha para que os planos de liberdade se concretizem. Eles o vêem como um salvador (ou, como diria dr. Breen, “uma ameaça a evolução, uma visão romanceada de um herói que chamam de Um Homem Livre — One Free Man“).
Quem é fã de FPS já está careca de saber como é a jogabilidade de HL… mas nem por isso o game deixa de ter sua cota de ótimas surpresas. O novo sistema de física aplicado em HL2 está presente em absolutamente tudo: até que a parte pesada do jogo comece, a ação correr solta e você tiver uma arma digna de nota nas mãos, são uns bons 10 minutos de jogo te adiantando as maneiras que você pode utilizar certos itens do cenário, como pedras, caixotes, latinhas etc… e tudo se comporta de maneira bem real. Por exemplo, se dois tonéis de plástico tampados estiverem boiando na água (ah, a água…) e um dos dois estiver mais cheio, cada um boiará de maneira diferente. Outro exemplo? Beleza: um caixote está boiando na água (já mencionei que a água é maneiríssima?), e se você o quebra, os pedaços de madeira se comportam como itens diferentes, cada um com seu peso, densidade etc… E isto faz parte de alguns quebra-cabeças do jogo, como pegar itens e empilhá-los sobre uma peça que você quer usar como uma rampa e você não alcançaria de outra forma que não fazendo um sistema de alavanca. Ou até mesmo a construção de uma pequena ponte com caixotes, etc… para passar por aquela água que passarinho não bebe. A não ser, é claro, que o passarinho em questão seja mutante e radioativo. Enfim, grande parte destes quebra-cabeças envolvendo a física dos objetos são bem engenhosos e divertidos. Sem contar que também é divertido demais pegar itens como televisores e jogar por uma janela fechada (“toma essa, dr. Breen!”)
Se lembram do infame trenzinho do HL1? Quem achou que a parte de veículos parou por aí, está muito enganado: ainda dá para pilotar um hovercraft (veículo que andam na terra e na água – que é muito bonita, por sinal) e um buggy de areia… e por mais que não seja um veículo propriamente dito, você controla até mesmo um ímã industrial, tipo aqueles de carregar carros em ferro-velho. Esta parte é memorável, diga-se de passagem. 🙂
Algo que foi levemente explorado no primeiro jogo volta com força total: a interação entre Freeman e outros personagens para avanço no jogo. Se no primeiro jogo isto se resumia a mandar um cientista ou outro abrir uma porta trancada a que só ele tem acesso, isto volta no segundo numa versão turbinada: ainda rolam as missões em que você precisa manter tal personagem vivo para avançar, mas no melhor estilo Freedom Fighters, você também passa a controlar pequenas equipes. Como o foco do jogo não é especificamente este, o sistema é bem mais simples: mande suas unidades atacarem determinado lugar no mapa, ou voltar para perto de você. Simples assim, mas podem ter certeza de que funciona que é uma beleza, e dá gosto ver a galera partir pra cima ao primeiro sinal de “ataquem!”. Ah, sim – as equipes não se resumem a controlar os humanos da resistência, como também os Antlions (criaturas da areia)… dá gosto ver aquela pequena nuvem de Antlions atacando o lugar onde você aponta. Os bichos são mais safos do que os soldados humanos!
Um lance que merece atenção redobrada de tão maneiro que é o item que representa toda esta inovação em bom uso de física no jogo: a arma de gravidade. Originalmente utilizada para carregar materiais perigosos ou itens pesados, a Gravity Gun é divertida de usar até o fim. A Alyx – sempre ela, ai ai – te passa isto a ela depois de um tempo de jogo, e você fica treinando jogar coisas pro cachorro dela pegar. O bicho é tão bem-treinado que você não pode dar mole na hora em que estiver treinando com ele… e daí em diante é só alegria: você pode pegar itens para arremessar em cima dos inimigos – alguns mais perigosos que os outros, indo de latões de tinta a armários, chegando até mesmo a usar serras de metal afiadíssimas – buscar itens distantes, como munição e armas (tipo Metroid Prime e Bionic Commando) e dar porradas gravitacionais (isso existe? sim, existe!) em criaturas menores, como os infames headcrabs que já são marca registrada do jogo e constante causa de tormento.
Na parte gráfica, Half-Life 2 consegue dar um banho na concorrência. E olha que nem me refiro apenas à água, que como já diria um amigo meu que nem quis comprar o jogo, “é a água mais água que eu já vi”, e eu não poderia concordar mais. Os efeitos de refração são espetaculares… quando você vai parar debaixo d’água e olha para a superfície é de perder o fôlego. A construção dos cenários impressiona, o jogador realmente se sente visitando uma cidade estrangeira; os cenários não parecem repetitivos e são muito bem-elaborados, com arquiteturas bem características e muitíssimo bem-elaboradas em cada região. City 17 é o típico centro de cidade, com alguns prédios residenciais e suas varandinhas, lojinhas, cafés e tudo mais… fora da cidade grande já se vêem casas bem diferentes do que se veria nela, e sim casinhas num esquema mais próximo a uma casa à beira-mar ou a um lago… e uma cidade interiorana – a tenebrosa Ravenholm, que é de fazer a Racoon City de Resident Evil parecer uma colônia de férias — é diferente disso, com casinhas menores, ruas de paralelepípedos, etc…. A bem da verdade, quem jogar HL2 vai andar pra caramba. O jogo tem várias cidades e regiões diferentes, cada uma com suas peculiaridades em um ótimo trabalho de arquitetura e design de fase. Detalhezinhos como buracos de bala nas paredes, o sangue marcando o cenário quando um personagem leva um tiro perto de algum lugar e até mesmo latões de tinta pintarem a parede (na marra, né?) quando arremessados com força ou estourados de outra forma. Peças de metal sofrem leves deformações quando você acerta balas ou com o pé-de-cabra. Tudo faz sentido no jogo.
Os personagens do jogo transpiram vida e personalidade graças ao muito bem-aplicado sistema de movimentos faciais (são 40 músculos na face de cada personagem humano). Por mais que você não veja a cara do Freeman em nenhum lugar que não seja na capa do jogo original ou no site da Valve e afins, os outros coadjuvantes com quem você interage impressionam; o momento-chave em que a Valve parece dizer “estamos levando isto muito a sério” é o monólogo do G-Man no começo do jogo. E daí em diante, amigos, a coisa só melhora: as expressões dos personagens passam credibilidade — surpresa, raiva, alívio, medo… o que quisessem que determinado personagem passasse está lá, e chega a surpreender como um efeito tão bem-feito flui sem um grande impacto na performance do jogo, mesmo que maioria das passagens em que rola este tipo de coisas sejam estritamente só conversa, sem muita ação em volta. O que não tira em absolutamente nada o mérito. Dos personagens do jogo, acredito que Alyx seja quem teve a melhor implementação das expressões faciais. Outros personagens também impressionam um bocado, como o casal desesperado no prédio residencial no começo do jogo e que aparecem depois em uma presença que pode empolgar e até mesmo emocionar os mais atentos.
O design dos inimigos é igualmente bacana… os guardas da Combine são sinistros, ver aquele par de olhos azulados do capacete deles é garantia de medo… e ainda rolam uns soldados especiais mais longe no jogo, com um armamento consideravelmente mais pesado. Os zumbis avec headcrabs que vinham desde o primeiro ganham dois amiguinhos super especiais… um deles gera headcrabs parasitas que são arremessados em você e o zumbi saltitante e nervoso, que parece mais um Alien — vocês sabem, daquela série de filmes… — que começou a se inspirar nos “zumbis atletas” que começaram a surgir em filmes de terror mais recentes como Extermínio e o remake de Madrugada dos Mortos. Este último bicho é a pior parada: ele pula de um prédio pra outro com uma facilidade brutal – e não contente com isso, eles vêm em grupo. Garantia de dor-de-cabeça e economia de munição. Quem baixou os vídeos certamente lembra dos Striders, aquelas aranhas gigantes que parecem egressas de filmes como Guerra dos Mundos… outro inimigo que provoca momentos de muita, muita tensão no jogo. Não banque o herói, só parta pra cima quando souber que realmente pode encará-lo!
A parte sonora tem uma adição bem interessante. Talvez porque o jogo tenha suporte a HDTV (aquelas televisões de alta definição que meia-dúzia de jogadores têm) ainda colocaram um esquema de legendas para os efeitos de cenário, usando o padrão Closed Caption já existente em alguns televisores. Isto é, dá para habilitar mais legendas além da parte dos diálogos, como os outros efeitos ambientais (como explosões, barulhos de máquinas etc…). A trilha sonora é criteriosamente isolada, alternando uns temas bem intensos e pancadão para as partes de ação desenfreada (“Freeman está cercado de helicópteros com pelo menos quatro mísseis cada… e tudo que ele tem é uma lata de tinta branca, E AGORA?”) e outras passagens mais climáticas e orquestradas (“Freeman sai dos esgotos e volta para a desolação de City 17, onde estão carros quebrados e ele vê um gatinho lambendo um pote de manteiga… o último sobrevivente neste canto da cidade”). A atenção dada à trilha sonora de HL2 é claramente maior do que a do primeiro, e os temas são bem empolgantes. Daria pra escutar em separado, num CD e tal.
Tão boa quanto a trilha sonora é a dublagem dos personagens (não contente em ter a sincronia labial aplicada à perfeição com os personagens acompanhando a pronúncia de cada palavra!), que convence bastante e dificilmente soa forçada… as melhores interpretações são as de Alyx (emoção à flor da pele, seja pra uma coisinha boba ou uma real situação de tensão), dr. Breen (a voz mais madura e a oratória quase fazem o jogador acreditar que seus planos de colaboração com o Combine sejam realmente uma boa idéia)… e, óbvio, o G-Man; sinistro, sombrio e misterioso como sempre. E dada a quantidade de personagens importantes para o desenrolar da trama, há uma grande cota de dublagem no jogo. Mas não achem que este forte enfoque no roteiro diminui a ação do jogo… não mesmo.
Em um jogo com tanta atenção ao que há de bom, chega a ser um trabalho hercúleo procurar algum problema digno de nota em HL2. As coisas que chegam mais próximas disto – e que em momento nenhum atrapalham o andamento do jogo, isto sim faz a diferença – são a linearidade do jogo (em termos… digamos que algo precisa ser solucionado, como desligar uma máquina; isto é bem específico, por mais que hajam várias maneiras diferentes de realizar tal feito, seja subindo por uma escada e desligando na mão, ou destruindo com uma granada…), o enorme carregamento antes do jogo começar (antes de aparecer o menu de abertura do jogo, que inclusive tem uma sacada muito legal… quando você instala o jogo, a tela de fundo mostra City 17, mas à medida que você avança no jogo a tela de abertura passa a ser relacionada com a fase onde você parou por último) e um efeito bobo que vaza aqui ou ali (tipo matar um cara de maneira que ele morra encostado em uma parede que você possa dar a volta… eventualmente você vê uma sombra “fantasma” do cara do outro lado da parede). Mas são problemas tão irrelevantes que nem sei se vale a pena comentar…
Cada segundo de espera por Half-Life 2 pareceu demorar uma eternidade, tanto para aqueles que jogaram o primeiro jogo quanto aqueles que se impressionaram apenas com os vídeos e fotinhos (aliás, o que diabos vocês fizeram que não jogaram o primeiro? atualizem-se!) e os amigos comentando sobre o primeiro. E cada segundo de espera valeu a pena, porque o nível de procura pela perfeição do jogo é absurdo: em todo lugar, o jogo tem vida. A história provoca medo e revolta, ao pensar que os humanos em questão estão sendo subjugados por outro que se acha superior por alguma razão; os cenários, credibilidade… do aspecto geral aos pequenos detalhes; os personagens, empatia… indo do climinha de amizade, passando pela desconfiança e pela raiva; e os inimigos, medo e tensão… por estar lidando com algo desconhecido. Em um game onde o andamento da história – que termina este episódio com uma sequência magistral, mesmo que o final propriamente dito seja tão bizarro e alucinante quanto o de HL1 — é tão importante quanto a ação propriamente dita, com todo o tiroteio e a tensão, passar este clima de que o jogo é um ser vivo e crível é fundamental. Half-Life 2 realiza isso com maestria, e mesmo captando referências que apareceram em outros jogos (e até mesmo filmes!), cria um novo patamar a ser seguido como inspiração em criação de jogos. De novo.