Braid: O tempo é uma ilusão

Braid (XBLA

[Originalmente publicado no site FinalBoss]

Uma das discussões intermináveis que vemos na indústria e imprensa dos jogos eletrônicos revolve em torno da manjadíssima pergunta ”games são arte?”. Papo vai, papo vem, e a coisa acaba se dividindo em facções diferentes: aqueles que acham que qualquer tipo de jogo é arte – afinal, reúne imagem, música, movimento etc… – e outros que acreditam que somente aqueles títulos que ultrapassam a barreira do entretenimento puro, evocando emoções (seja de simpatia ou repúdio) e fazendo pensar merecem tal definição… assim como acontece com qualquer obra de arte: para uns, a fotografia A Fonte de Marcel Duchamp – um mictório! – tem tanto valor quanto a Mona Lisa de Leonardo da Vinci – para outros, isto é absolutamente impensável. O negócio é que qualificar qualquer coisa como arte é algo muito, muito subjetivo; posto isto, de vez em quando aparecem certas obras que acabam causando uma impressão tão chocante — e inesperada! — que não dá para imaginar outra definição que não ”isto é arte”. Braid, criado por Jonathan Blow e seu estúdio Number None para a Xbox Live Arcade, é um destes casos.

O jogador controla Tim, um sujeito de terno e gravata vermelha. Em cada ambiente de sua casa, há um mundo a ser explorado por ele, e antes de escolher uma das fases há uma fileira de livros que contam – através de um texto bastante lírico e bem escrito – pedaços da vida do personagem, constantemente fazendo referência a uma Princesa que não está mais ao seu lado, e relatando o que aparenta ser o fluxo de um relacionamento. Um dos pontos citados pelos livros é o sonho em poder voltar no tempo e fazer as coisas de forma diferente, corrigir certos arrependimentos, e aí por diante. A trama é a desculpa perfeita para oferecer ao jogador uma maneira bastante intrigante de manipular o tempo em uma série de fases apresentadas em forma de pinturas a óleo.  O gamer mais desavisado vai olhar para Braid e pensar ”ok, é mais um joguinho de plataforma 2D igual a Mario, Alex Kidd etc…” — e não poderia estar mais errado.

Apesar das inúmeras referências a outros jogos (com direito a canos verdes com plantas carnívoras, a frase ”desculpe, mas nossa princesa está em outro castelo” e até mesmo uma área igual à disposição da primeira fase de Donkey Kong), Braid está longe de ser apenas focado naquele pulo na hora certa ao lugar adequado… se tanto, isto chega a ficar em segundo plano em várias ocasiões. Como dito acima, a manipulação do tempo é peça-chave nos quebra-cabeças do jogo. Rebobinar o tempo já foi feito antes (Prince of Persia: The Sands of Time é apenas um dos vários exemplos), mas não era apresentado de forma tão integral à experiência quanto neste caso. Como há o clima de quebra-cabeças, o fato do jogador morrer ou não é absolutamente irrelevante: dá para voltar a fase inteira se quiser, e às vezes isto é necessário para pensar nas soluções.

Se esta comparação for válida o suficiente, pense em Portal… mas trocando as dimensões e  jogadinhas de física, momento, inércia etc… pela manipulação do tempo. Em uma fase, caminhar para a direita faz o tempo avançar, e para a esquerda retroceder; em outra, é possível criar uma bolha onde tudo acontecerá mais devagar do que à sua volta; às vezes, rebobinar o tempo gerará um ”fantasma” do herói, que repetirá a ação do verdadeiro Tim até o momento em que o jogador disparou o efeito… isto sem contar que às vezes alguns objetos e inimigos no cenário não são afetados pelas alterações temporais provocadas pelo jogador, outras são e isto também tem que ser levado em conta na hora de resolver os puzzles.

Pois é: pensar fora da caixa na maioria do tempo ajuda, pois as soluções nem sempre são tão óbvias, e em outras vezes você se pegará pensando como não imaginou aquilo antes. Às vezes o jogador precisará pensar em coisas que aconteceram lá no começo da fase (tanto em relação ao lugar quanto ao evento no tempo mesmo), precisando chegar longe em uma fase só para rebobinar o tempo e resolver um enigma. Em outros casos, é necessário pensar em fluxos de tempo diferentes, já que certos itens, inimigos e objetos do cenário podem ser imunes à modificação temporal pelo jogador; além disto, ainda é possível – e necessário, em certos pontos do game – escolher a velocidade do efeito do tempo, tal qual um DVD player (-2x, -4x, -8x) ao pressionar os botões LB e RB do controle.

Em cada mundo, existem peças de um quebra-cabeças a ser montado pelo jogador, e quando são finalizados mostram situações envolvendo um sujeito e uma mulher: às vezes é o cara tentando pegar uma garrafa de vinho para servi-los, em outro mostra o mesmo sujeito em um restaurante propondo um brinde… enfim, há uma história de romance e aparente afastamento, dado todo o papo da Princesa inalcançável e vontade de mudar o passado. Mas não pensem que os quadros são meramente para garantir Achievements… infelizmente, não dá para contarmos mais sobre isto sem nos enveredarmos pelo fantástico mundo dos spoilers.

À medida que as fases são liberadas, o jogador fica livre para explorá-las novamente e pegar as peças de quebra-cabeças que faltam, de forma não-linear. Isto é bom e poupa frustração, já que dá para refrescar a cabeça de um puzzle impossível partindo para outro igualmente complexo – e notem que isto não é uma reclamação. Depois de terminar o game, o jogo oferece uma modalidade estilo speed run para os fãs desta atividade… chega a ser irônico pensar nesta atividade se pensarmos que é um jogo onde a manipulação do tempo é essencial, mas beleza.

Apresentado em 2D, o estilo visual de Braid é uma beleza de se ver, e fica ainda melhor numa TV de alta definição. Tudo é apresentado em forma de pintura a óleo, dando um quê impressionista ao jogo. Ao usar as técnicas de manipulação de tempo, as cores do cenário ficam mais fortes ou mais fracas, e outros efeitos como sombreados para acompanhar o trajeto dos personagens também fazem bonito. A trilha é predominantemente composta de música folk: arranjos de cordas, violões, violinos… há um clima de exposição, parece que o jogador passa por um museu com música ambiente; como é de se esperar, a música e os efeitos sonoros também são afetados pelas rebobinadas e avanços do tempo.

Sinceramente, chega a ser difícil achar falhas realmente dignas de nota em Braid. Fora sua duração relativamente curta – obviamente partindo do princípio que o jogador saiba de cara de todos os puzzles e jogue sem erros… isto é, impossível – a única coisa que nos chamou um pouco a atenção foi a animação de subir escada… e mesmo assim, é uma coisa tão irrelevante e mínima em comparação ao resto que chega a parecer implicância da nossa parte.

Braid é um dos jogos mais intrigantes e tocantes desta geração. Misturando ação de plataforma, solução de quebra-cabeças e manipulação do tempo – isto e pintura, poesia e literatura, e até mesmo física quântica – este é o tipo de game que não se vê todo dia. Ao mesmo tempo em que tira o chapéu para outros clássicos do videogame (incluindo Super Mario Bros., Elevator Action e Donkey Kong entre outros), o jogo surpreende ao oferecer situações em que o jogador precisa pensar fora da caixa, tendo que levar em conta fluxos de tempo diferentes, memorização de eventos a serem solucionados posteriormente com aquela rebobinada conveniente, e até mesmo contar com a ajuda de seu próprio personagem em outra corrente temporal. Não contente com isto, a apresentação geral parece saída de um sonho: os cenários e personagens que lembram ao movimento impressionista, as músicas estilo folk com arranjos de cordas, o ótimo texto na entrada de cada fase… por mais que se trate de um jogo de curta duração, o tempo poderá parecer tão irrelevante ao jogador quanto ao bravo Tim em busca de sua inalcançável Princesa.