killer7: Eu Sou Legião, Pois Nós Somos Muitos

 

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killer7 (GameCube)

[Originalmente publicado no FinalBoss]

Um mal que assola a indústria dos games é a “síndrome do eu-também”. Mesmo que seja compreensível ver estúdios tentando ganhar o seu ao pular no barco de gêneros que tenham feito sucesso de vendas (por exemplo, GTA3 fez sucesso e ele alavancou jogos como Mafia e True Crime por outras empresas), e não necessariamente o resultado final é bom assim…. Mas este não é o maior dos problemas: o que há de nocivo nisto é a pressão por parte de certos estúdios e seus investidores para que os desenvolvedores criem algo similar às tendências de mercado, sufocando a criatividade dos game designers, salvo raríssimas exceções originalíssimas como Katamari Damacy e WarioWare. A Capcom resolveu chutar a jogabilidade convencional para escanteio ao criar Killer 7, um dos games mais intrigantes de 2005… e talvez desta geração como um todo. Se tiverem que culpar ou agradecer alguém, enviem seus pombos-correio para a dupla Shinji Mikami (série Resident Evil) e Goichi “51” Suda (Moonlight Syndrome / PSOne).

Killer 7 acontece no ano de 2003, cinco anos após os países membros da ONU assinarem tratados para a redução e eventual erradicação do terrorismo, abolindo os transportes aéreos (rendendo uma vasta rede de auto-estradas intercontinentais) e redes de comunicação, e eliminando todos os armamentos nucleares para que uma nova era de paz mundial começasse. Isto aconteceu, e a humanidade viveu uma era de bonança… Até que uma nova forma de terrorismo apareceu. Controlada pelo sinistro Kun Lan e sua “Mão Divina”, a ameaça Heaven’s Smile (homens-bomba invisíveis… ou seriam zumbis-bomba? Mistério…) espalha o pânico no mundo livre. E para eliminar este mal que nem o FBI, CIA, Interpol e congêneres têm a capacidade de conter, a única esperança são os Killer 7. O grupo de assassinos de aluguel, também chamado de Sindicato Smith, equivale a um pequeno exército e tem uma peculiaridade: seus integrantes são manifestações físicas das sete personalidades da mente de uma pessoa só… Harman Smith, um velho em uma cadeira de rodas que calha de ser o mais temido e respeitado matador de aluguel do mundo… e parceiro favorito de partidas de xadrez contra Kun Lan. Hã? Como assim?

Como explicar a trama deste jogo de maneira concisa? Tentemos: imaginem se o cineasta David Lynch — notório por filmes de difícil compreensão, forte uso de elementos imagéticos para alavancar a narrativa dando a ela um clima onírico e surreal… e que tem pelo menos três referências a ele no jogo… duas óbvias, uma nem tanto — se reunisse com autores de animes de público-alvo mais velho (Cowboy Bebop e Crying Freeman são os exemplos mais próximos que me vêm à mente) e algum artista visual pop para que este grupo fizesse uma trama madura sobre intriga política, conspirações governamentais, questões metafísicas, referências cruzadas a acontecimentos do mundo real, paródias a megacorporações, líderes espirituais (como Andrei Ulmeyda, possivelmente um brasileiro apesar do nome), lendas urbanas, cultura pop e até mesmo videogames… tudo amarrado em um jogo de fácil aprendizado, onde a jogabilidade simplificada serve mais como um veículo para contar um thriller psicológico que requer imersão por parte dos jogadores para ser totalmente apreciado.

Killer 7 tem um enredo que certamente dará um nó na cabeça dos que ultrapassarem a barreira de esquisitice do início do jogo (por conta da curiosidade sobre o que diabos está acontecendo), e um nó de marinheiro quando o game é completado (já que a história não é das mais simples de juntar as pontas soltas para criar algo de fácil digestão, rendendo várias interpretações possíveis). Tudo fica mais difícil com moças assediando sexualmente idosos paraplégicos, uma cabeça decepada que conversa contigo, fantasmas de vítimas de Smith e suas mensagens do além, quartos misteriosos trancados a mil chaves em um trailer residencial em Seattle… preparem-se para um redemoinho de surrealismo noir, onde nada é o que parece, e ter certeza induz ao erro.

Já deu para reparar que Killer 7 não é um jogo típico, e faço questão de frisar que isto também se aplica à sua jogabilidade. Mesmo que o jogo reúna elementos típicos de alguns outros gêneros — como o estilo de adventure adotado em Myst, a exploração, procura e uso de itens de Resident Evil, a solução de puzzles de 7th Guest, os jogos de tiro em primeira pessoa remetendo a jogos de pistola como Time Crisis, mas com mais mobilidade e uma pitadinha de estratégia — a experiência de jogar Killer 7 consegue ser única, e não um simples arremedo dos gêneros citados. O andamento não é frenético como os alguns FPS de sucesso; no entanto, não é um adventure puro como o já citado Myst. Ainda estão comigo? Continuem lendo.

Os controles de Killer 7 são de aprendizado bem fácil, já que este se resume a alguns movimentos básicos: no cenário, você pode caminhar para frente, dar meia-volta, e ao chegar em certos pontos, escolher caminhos pré-determinados, objetos e personagens para interagir (que aparecem em uma janelinha estilizada imitando a função picture-in-picture das TVs, e cada rumo tem a forma de um estilhaço de vidro); se no meio do caminho você ouve a risada demente dos H.S., pare tudo e aperte R para trocar para visão em primeira pessoa, e scaneie o cenário ao pressionar L, visualizar os H.S. e matá-los (seja crivando-os de várias balas, ou indo nos tiros até achar um ponto fraco onde eles morrem com apenas um tiro, se vaporizando em uma nuvem de sangue que é obtida pelo grupo para recuperar energia, permitir ataques especiais e os possíveis upgrades). Existe uma grande variedade de inimigos, cada um com suas características e formas diferentes de matar… pense que cada uma das personas é um tipo de arma diferente, todas com munição infinita e cada uma com uma velocidade de recarga diferente, o que faz uma diferença dos infernos dependendo da situação, e que certos inimigos só morrerão com o ataque de tal persona. Mas e se esta estiver morta na hora? Aí é saber quem é que vai encarar a situação na marra e perder energia sem comprometer a equipe inteira enquanto o que servia está fora de ação. “Recursos humanos” é isso, o resto é conversa…

E por falar em armas diferentes, vamos aos membros da “família” Smith: Garcian carrega uma pistola silenciada relativamente fraca e é o líder da equipe e negociante entre Harman e seus clientes; ele pode buscar e ressuscitar os companheiros mortos em ação (um contorno de corpo humano em giz desenhado no chão e um saco de papel pulsante e manchado de sangue no meio), sendo assim o mais importante do grupo – se Garcian morre, o jogo acaba. O feroz Dan carrega uma enorme Magnum modificada, e ainda tem um ataque especial chamado Collateral Shot. Kaede, a única mulher, está sempre descalça (possível referência a filmes do Tarantino, que se amarra num pezinho de mulher) e carregando uma arma de longa distância e um vestido manchado de sangue; e por falar em sangue, o poder especial dela é cortar os pulsos e jorrar sangue para destruir certas barreiras, ou absorver sangue de outros lugares específicos para revelar itens escondidos. Kevin — não é o diretor de Procura-se Amy — é um sujeito albino caladão e exímio atirador de facas; ele se tornar invisível (assim podendo passar por sensores de segurança) e pode jogar uma nuvem de adagas nos inimigos. Coyote, o ladrão sul-americano, tem uma pistola modificada, tiro especial como o de Dan (mas menos potente) e sabe destrancar cadeados e saltar alturas para alcançar lugares inacessíveis como ninguém. Mask, figurão de voz gentil, usa uma máscara de luta-livre mexicana, um par de lança-granadas e uma força descomunal para destruir barreiras com golpes certeiros de sua lucha libre. Con, um adolescente cego, se guia por sons e carrega um par de pistolas automáticas, e é o mais rápido do grupo. As personalidades do jogo podem ser trocadas de duas maneiras: no menu de pausa do jogo (menos Garcian) e através de televisores no Harman’s Room, de que falarei em breve.

Além das partes de combate, o game conta com uma série de puzzles bem familiares a quem jogou outros action-adventures da Capcom (estou olhando para você mesmo, Resident). Alguns requerem o uso ou coleta de objetos, troca de personas, atenção à história do jogo e elementos do cenário, uso dos anéis encontrados no decorrer do jogo (fogo, água, tempo, resistência etc…), e por aí vai. Seja por dicas dos espíritos presentes no jogo (o trio Iwazaru, Mizaru e Kikazaru – que é o nome japonês dos três macaquinhos daquela estátua que representa “não vejo o mal, não ouço o mal, não pronuncio o mal”… o primeiro é o mais ativo no jogo, uma figura vermelha com uma máscara e uma mordaça sadomasô que sabe tudo que acontece e todas as esquisitices deste mundo, agregando os cargos de tutorial e guru) ou por misteriosas cartas via pombo-correio (não tem mais “air mail” convencional, lembram?) nomeadas com títulos de músicas e álbuns da banda inglesa The Smiths (“Still Ill” e “Meat Is Murder” são algumas das homenageadas, sem contar o puzzle que envolve a frase “How Soon Is Now?”!), fitas cassete, etc…

As lutas de boss deste jogo são bem inusitadas, fugindo do esquema “saia atirando naquele ponto fraco do chefão até ele morrer”. Em alguns casos, chegam a ser tão misteriosas quanto os puzzles do jogo. Por exemplo, em certa parte do jogo você tem que atirar no cérebro de dois personagens a uma distância… mas eles não viram a cabeça de maneira visível à sua mira sem certa condição ser cumprida… e quando isto acontece, será que qualquer uma das personas serve para matar, ou outra facilitará e muito o processo? Outra antológica é em uma parte parodiando os seriados japoneses de equipes de heróis a la Changeman, onde um grupo de sete figuras chamadas HandsomeMan aparecem de roupa colante e capacetes para enfrentar os Killer 7 de igual para igual. Aquele grupo cheio de papagaiadas coloridas na roupa, e os protagonistas com aquele jeito “com quem estes babacas pensam que estão lidando?” – tirando o Con Smith, mas ele é moleque, né… dá um desconto.

Um aspecto interessante é que a complexidade dos quebra-cabeças muda de acordo com a dificuldade escolhida, e isto também se aplica ao mapa do jogo, acessível a qualquer momento (e que no nível mais fácil indica qual personagem resolve que tipo de problema, qual dos anéis serve, etc…). Felizmente, o espírito Yoon-Hyun é o sistema de dicas no jogo: se você falar com ele normalmente, ele dá uma dica superficial do jogo e pede que atire em sua máscara caso você queira saber mais… ao fazê-lo, ele a veste, fará um gesto obsceno para você e te insultará, mas dará dicas mais específicas para a solução do problema mais próximo. Isto não é de graça: ele avisa antes que “a Verdadeira Máscara tem sede de sangue” (no caso, o coletado ao derrotar inimigos)… E ainda te xinga por arregar para puzzles, esse desgraçado.

Ah, sim, o Harman’s Room: em certas partes dos mapas, algumas das salas são seguras e têm a presença da jovem Samantha e Iwazaru. Se ela estiver com um uniforme de empregada, é solícita e pode salvar seu jogo (ela em roupas casuais, cuidado: ela é uma fera… abuso verbal, porrada no Harman, grosseria, egoísmo, tudo o que pode haver de ruim em uma pessoa). E é do Harman’s Room mais recente que você começará de novo se alguém morrer, permitindo a escolha de Garcian para resgatar o pobre infeliz e ressuscitá-lo… Qualquer destes aposentos terá um televisor, onde se confere o status de cada personagem e converte o sangue espesso colhido dos inimigos em soro para melhorar os atributos de cada uma das personas. Há um limite por fase de sangue que pode ser convertido.

Assim como em outros jogos da Capcom (DMC, RE4), estes upgrades com o soro liberam ataques especiais, melhoram a estabilidade da mira, aumentam a duração de manobras especiais e muito mais. O ataque de proximidade destrancável não deve ser subestimado: se você tem vários inimigos vindo em sua direção e você conseguiu dar cabo de praticamente todos menos um, com os upgrades certos você pode apertar um botão no timing certo para que a persona em questão deslanche um golpe fulminante no inimigo que estiver mais perto (Mask dá uma ponte de luta-livre, Dan segura o monstro e dá um tiro direto no coração, cada um tem sua maneira de matar).

Quem zerar o jogo (que conta com um curto e empolgante epílogo jogável após os créditos, oferecendo dois finais diferentes) destranca um nível superior de dificuldade, e uma personalidade extra e exclusiva a este modo aptamente chamado “Killer 8″. Quem será a oitava personalidade?

A escolha do estilo visual de Killer 7 deu muito o que falar na época em que o jogo foi revelado por ser uma aplicação estranha do cel-shading, remetendo ao estilo gráfico utilizado em certas graphic novels. Degradês, cores fortes, iluminação e efeitos de ambiente, e outros efeitos como a explosão e recomposição de sangue ao trocar de personalidade, a dissolução da tela na morte do personagem, tudo adiciona muito ao clima, seja no senso de infinito aos cenários (com raríssimos slowdowns)… a variedade indo de ambientes fechados a grandes espaços abertos, de hotéis a vielas de cidades na República Dominicana, de restaurantes ao ar livre a edifícios de apartamentos, tudo segue um grafismo bem único e consistente.

O jogo se propõe a ser uma “peça de arte pós moderna” (palavras do produtor do jogo), e com certeza conseguiu… pois não vai agradar a todos. É inegável que o jogo tenha um estilo bem distinto, mas é perfeitamente normal que não agrade a todos: há quem considere artistas pop um lixo e pintores clássicos geniais… cada um, cada um. No entanto, vale afirmar que os vídeos e screenshots não fazem justiça a jogar Killer 7 a longo prazo. Sem contar que as cutscenes do jogo parecem cenas de cinema, com ângulos de câmera dignos de filmes. E não estão restritas a cenas na engine do jogo, já que à medida que o jogo avança, mais full motion videos mostram a história em formato anime. Ótimo para os fãs do gênero!

A trilha sonora de Killer 7 é algo de espetacular, com uma grande variedade de estilos diferentes. Trip-hop, jazz, rock, drum & bass e outras surpresas que eu não deveria revelar mostram o apreço que a galera da Capcom teve neste quesito do jogo, soando como música de fundo na hora certa, e saltando para o primeiro plano em momentos-chave do jogo. Digamos que este que vos escreve já estaria na fila de lançamento da trilha sonora original do jogo, de tão marcante que a trilha é. Sem contar, é claro, a ótima dublagem dos personagens, risadas dementes dos HS, os monólogos dos fantasmas (imaginem algo entre “robótico” e “agonizante”, e que você só entende uma palavra ou outra), jingles musicais incomuns – como o arranhado de uma corda de violão — indicando o status dos quebra-cabeças… a parte sonora do jogo é nada menos que brilhante.

Agora, vou lhes dizer que o jogo não levou uma classificação Mature à toa: os caras são boca-suja mesmo. Não é só nas cutscenes: ao acertar o ponto fraco dos H.S., que carinhosamente chamarei de “one hit kills”, cada um dos matadores tem uma frase-chave… “hurts, doesn’t it?” e “this is way too easy” soam muito mansas ao lado de “you’re fucked!”, “fuck you!”, “son of a bitch…”. Uma pena cada um só tenha uma tirada – quando muito, duas! — para os “one hit kills”, o que periga soar repetitivo a longo prazo… mesmo que a maneira que eles falem tais tiradas seja tão deslocada que chega a soar “cool” (diferente do infame “you bitch!” cheio de raiva de Prince of Persia: Warrior Within), bem que poderiam ter colocado outras frases de efeito bacanas.

Desde o princípio, já era bem aparente que Killer 7 não seria um jogo para todos os gostos de jogadores; isto acabou se confirmando, mas a meu ver, o grande problema para esta parcela dos gamers se resume à aparente falta de liberdade de movimento nos cenários, por mais não faça diferença dada a proposta do jogo. De resto, os problemas deste jogo são bobagens (e, por isso mesmo, irritantes) como não poder pular de uma frase para outra na hora dos diálogos com os coadjuvantes fora das cutscenes, que é algo que poderia ter sido implementado com uma facilidade besta. Às vezes você quer tirar dúvida no Harman’s Room sobre ataques especiais ou como abordar certo tipo de inimigo: você é obrigado a ouvir a voz bizarra de Iwazaru e o texto na íntegra até chegar a parte que te interessava; pular frases, nem pensar… ou é cortar o texto inteiro com o botão Start, ou nada. Outra parada que quase me fez pular pela janela foi a dificuldade na solução de certos puzzles, nada óbvios, que até mesmo no modo mais fácil são dificílimos. Ah, sim: Capcom, se fizerem outro jogo da série, botem mais frases para os “one hit kills”!

Arte pós-moderna? Experimentalismo? Killer 7 é surreal, noir, violento, perturbador e único em sua categoria. A Capcom e a Grasshopper lançaram um título que quebra com as convenções dos videogames – o que é uma grande ironia, pois utiliza elementos presentes em outros gêneros, e seu contrapeso é a possibilidade de ser mal interpretado com “falta de liberdade nos controles”, quando isto quase chega a ser algo secundário dada a proposta do jogo – trazendo um jogo de fácil aprendizado, mas que nem por isso pode ser considerado um jogo fácil. E não me refiro apenas à dificuldade: escondida em uma jogabilidade simplificada ao extremo que serve de veículo para contar uma história reside uma trama complexa que é de fazer autores de realismo fantástico pensarem na aposentadoria. Quem choramingou a quebra de exclusividade do jogo ao GameCube (uma grande perda de tempo, mesmo porque o jogo é de uma third-party) e cair de cabeça no jogo de vez provavelmente esquecerá desta picuinha rapidinho, pois quanto mais gente disponível para discutir a bizarra trama do jogo, melhor. Aconteceu o que poucas empresas têm coragem, disposição ou possibilidade de tentar: uma fuga da mesmice formulaica presente no mundo dos games por uma série de razões… e que exatamente por isso periga não ser bem aceita por todos. Com um sorriso explosivo no rosto, uma risada demoníaca ecoando e uma gangue de excêntricos matadores como guarda-costas, a Capcom lançou um jogo que uns amarão, outros odiarão, e renderá longas discussões a todos estes.